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Breath of Memories
“A obra de arte é o único objecto que nos dá a indicação de que cada objecto precisa da sua própria ciência” – Roland Barthes
O simples acto de pensar parte de coligir, de buscar entre um conjunto disperso de experiências que constitui a memória, algo ordenado (mesmo que de forma labiríntica, ainda que com narrativas só inteligíveís aquele que a preserva), algo que de cada vez que se procura se reordena e renova, gerando o gozo da aprendizagem incessante, que a cada pesquisa faz novas descobertas geradoras de prazer viciante e de novas memórias. Por isso as memórias respiram, como vivas que são. Assim, pode perceber-se a importância que tem para a artista a consciência deste dispositivo poderoso da memória material que mantém perto de si - diria mesmo, que integra em si e respira consigo - como gramática resultante e desde logo reutilizável em momentos de catarse pessoal. Mais do que o encontro consigo própria, a constituição e pesquisa desse acervo de memórias vivas fomenta a criação de si propria.
Para Joana Soberano, a Natureza é conscientemente fundamental (mesmo indispensável), ao seu equilibrio e à sua verdade. Talvez seja a sua grande mestra. Ela representa-a nos seus quadros como um hino à certeza da esperança, da transformação, da passagem para o outro lado, do que está para além do momento ou do espaço, do evidente, tal como uma semente é, em si própria, um momento de uma árvore que sabemos ser, muito mais do que só o que temos patente aos nossos sentidos.
No seu trabalho, as memórias e representações de paisagem são-no, essencialmente, de paisagens da mente, de palcos para emoções. Transposição ou representação de vestigios da importância de sentidos e funções que a autora reconhece ou atribui à natureza. Não esqueçamos que qualquer vestigio é uma manifestação de uma proximidade, por mais longe que possa estar o que o deixou.
Geralmente, perante cada obra sentimos a presença de dois principíos, materiais ou realidades opostas e inconciliáveis, dificeis de subordinar uma à outra. Antagonias, dualidades. Isto pode ser evidenciado pela divisão das áreas de representação pictórica, geralmente bem delimitadas, mas também por frases inseridas como pintura ou pelos títulos atribuidos, por vezes perguntas, quase advinhas.
O facto de advogar em dois campos contraditórios (o da perda/impossibilidade/impotência/dúvida e o da esperança) exige um distanciamento que se nota pela subtração do objecto representado às suas associações habituais, ao seu contexto de inserção expectável, como ferramenta para abordar a dualidade presente nos quadros apresentados e que persiste como dispositivo operativo, até aos trabalhos mais recentes, ou seja, já há mais de uma década. Esta distância (por vezes oposição), entre o que se reconhece e o que se induz a pensar é utilizada frequentemente pela artista ao serviço da afirmação positiva da vitalidade e da vitória da esperança na renovação, como manifestação (catártica?) de confiança na própria vida e é interessante que o seu processo de criação artistica consiga desse modo ter sempre latente, o código genético de uma cura, solução, ideal quase irónico, que partindo do negativo acaba por evidenciar mais veementemente o outro lado da moeda e afirmar a superação.
Outro aspecto que podemos enquadrar nesta concepção dual da artista é o facto dos seus quadros, para além de memórias de natureza ou de objectos, serem povoados por “criaturas” (insectos, aves, répteis, etc), como caricaturas e alegorias ao Humano, sendo este estado de criatura aquele a que está condenado um humano abandonado pela graça, que ainda atravessa a obscuridade sem esperança, no seu estado mais primitivo ou redutor da existência. Também aqui há um distanciamento entre o que se representa e o que se quer significar. Estas criaturas e sobretudo o desejo de fugir desse estado, despoletam a catarse redentora que aponta o caminho do crescimento, com recurso formal à palavra, ou melhor, à ideia, para evidenciar o universo exclusivo do humano não bestealizado. Isto é também dualidade entre trevas e luz, inconciliáveis, porém ambos presentes. Qualquer forma da nossa compreensão reside no intervalo entre ser e não ser.
O mundo material é mais facilmente comunicável pela ideia de representação, de semelhança, mas não é desse mundo que a artista fala. Os fenómenos mentais são exteriores ao mundo fisico mas mais próximos do objecto de trabalho de Joana Soberano. Por isso, ela tem necessidade quase permanente do auxílio das palavras, mais perto do pensamento e explicitadoras do carácter polarizado deste.
Contudo, há ainda na sua obra a necessidade de aperfeiçoar/reforçar o pensamento também através da beleza. Talvez possamos dizer, através da sensação, da percepção do belo, que não abandona todavia o campo do ideal, restando à representação, ao mundo sensível, apenas a sua imitação, que a boa capacidade técnica e oficinal da artista não logram superar, simplesmente porque é insuperável.
O belo, inantígivel do sensível é completado pelo belo não sensível no sentido fisico, mas inteligivel das ideias transcritas / transportadas nas frases ou títulos e assim, o objecto, ele todo, torna-se belo porque realiza o seu destino, como diria Hegel. Ou dito de outro modo, Ser é tão só ser percebido e por isso o objectivo de alcançar o belo é conseguido.
Apesar de tudo, tenhamos a certeza que a artista não pode prometer nada. Nada para além de honestidade e de uma atitude ética que permite que estes quadros agora expostos, alguns com quase uma década de vida, continuem a conter uma parte do momento presente, a possuir no seu interior o silêncio do tempo, no qual os enigmas profundos da vida se podem revelar.
A arte tem a séria responsabilidade de não ser entretenimento, e de trabalhar com a história, com a memória e o trauma. São importantes, não só os objetos artísticos mas também os processos intelectuais, as atitudes éticas, para além da própria criatividade. Para além disso, arte é uma construção, em que a aparência fisica (a “coisa” como diria Heidegger) é um elemento entre muitos outros; por isso uma mudança no elemento fisico não constitui uma mudança nas convenções da arte. Daí não ser de estranhar a utilização, pelo mesmo artista, de distintas ferramentas expressivas, que no caso da autora em análise, têm passado pela pintura, pela instalação e pelo vídeo... Uma e a mesma construção.
Ouvimos uma vez a Manoel de Oliveira, a propósito de um seu filme, ( “Non ou a vã glória de mandar”), dizer que “...a esperança é a única coisa que a Natureza deixou ao Homem...” e podemos acrescentar que a Arte é talvez dos poucos instrumentos deixados à Esperança. Compraz-nos concluir que Joana Soberano, pelo seu trabalho contribui para a realização da Humanidade, no minimo no sentido Beckettiano de tentar e insistir para “falhar cada vez melhor “, ou citando de memória um poeta brasileiro, contribui tão só porque “...sou um olho, não porque me vêm um olho, mas porque vejo...”.
Eduardo Rosa, Janeiro de 2012 - Texto para catálogo da exposição
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